uma pastelaria de bairro.
barulho de rádio e televisão. um concurso ou um programa da manhã com muitas palmas.
um homem de 30 ou 40 anos, não se percebe bem, corte de cabelo pouco útil, óculos grandes a esconderem-lhe os olhos, camisa e casaco bem engomados, mas cujas cores não parecem bater certo.
pediu um galão e um bolo folhado e foi buscar o jornal regional de uso comunitário dos clientes.
curvado sobre o jornal e o prato do bolo em cima deste, come com gestos pequenos. económicos.
destacam-se o mastigar violento e os olhos cravados nas letrinhas pretas. os movimentos do maxilar faz ângulos estranhos, movimenta-se para virtualmente todos os lados.
sem tirar os olhos do jornal, procura com dedos sem destreza a pega do copo de galão. depois de uns goles, sustenta o copo no ar, e quando o castanho leitoso está prestes a entornar-se sobre o diário da região, uma criança grande para a idade - aparenta uns quatro anos mas tem gestos de um de dois - aproxima-se e olha para ele. o homem, sem saber o que fazer, continua olhando o jornal. o miúdo diz olá, de maneira abébézada. o homem não reaje. a criança estranha. é engraçada, vivaça, e desperta a atenção de todos na pastelaria. provavelmente será a primeira vez que alguém o ignora. corre para a mãe, abraça-se a ela. esboça um beicinho. rapidamente esquece e volta às suas brincadeiras. entretanto o homem mantém-se na mesma posição, quase fetal, olhos à distância de um punho, no qual apoia a cabeça, do jornal.
o homem repara que alguém o observa. desvia os olhos do jornal. muda a posição do punho para uma mão aberta que lhe esconda a cara. como os meninos pequenos, a parede criada por aquela mão dá-lhe a ilusória sensação de não ver nem ser visto.
passado um pouco distrai-se. absorto nas notícias de uma região onde geralmente nada de novo parece acontecer há muito, a mão escorrega-lhe para sobre a mesa e ali fica. torta e meia cerrada, parece rogar por atenção, ajuda, alguém.
tem tiques. o pé suspenso da perna cruzada move-se, de vez em quando, como num espasmo. a boca não aguenta muitos segundo quieta. abre-se, os lábios tentam esgueirar-se do seu lugar com o que parecem puxões descoordenados, cada um para seu lado. o mindinho da mão esuqerda dobra-se contorcido como que em sofrimento. a qualquer momento se espera movimento espásmico que o faça distender-se, libertar-se de uma tensão permanente. se tal acontecesse até a própria roupa se rasgaria, já habituada àquele corpo contraído, o risco do cabelo desalinhar-se-ia, os dedos das mãos voltariam aos lugares originais.
através do vidro um adolescente passa de bicicleta. o som das correntes nas rodas fa zo hoem levantar a cabeça do jornal, pela primeira vez em muitos minutos. o movimento é rápido o suficiente para ainda conseguir ver o rapaz e a bicicleta a desaparecerem pela esquerda da janela. sustem-se assim, de cabeça levantada, e fica a admirar o momento já temrinado, o rapaz sobre a bicicleta que por esta altura já deverá estar no final da rua. fica, olhando o invisível, um passado já distante, uma presença fantasma.
olha em volta. apercebe-se agora que a pastelaria está esvaziada de todas as pessoas que ele cumprimentou vagamente quando entrou. olha lá para fora outra vez e repara que a luz mudou e que entretanto anoiteceu. de facto, a empregada da pastelaria varre o chão a alguns centímetros dos sos pés naquele momento.
indeciso e um pouco indignado, não se sabe se espera algo que não veio, se se surpreende por as horas terem passado tão depressa, se lhe parece que a pastelaria não deveria fechar.
solenemente, dentro do limite da sua pouca destreza e elegância, fecha o jornal, deixa umas moedas na mesa, levanta-se e prepara-se para entrar na rua.
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